Metodologia e linguagem de trabalhos académicos

Revendo a revisão

Um texto de revisão – tipicamente um artigo ou, por vezes, um capítulo autónomo de um livro – é um tipo de publicação relativamente comum em disciplinas das Ciências que pretende fazer o ponto da situação a respeito do conhecimento sobre determinado assunto (aquilo que, por vezes, se designa como o estado da arte). Como o conhecimento surge através da literatura primária, um texto de revisão, no essencial, é baseado na literatura primária e, de forma alguma, apresenta informações novas resultantes do conhecimento pessoal directo ainda não sujeito a publicação (nas Ciências não há conhecimento antes da publicação). Ao alicerçar-se na literatura primária, a revisão insere-se na literatura secundária.

O objectivo e as características de um texto de revisão são semelhantes às de um texto de História da Arte dedicado à fortuna crítica de uma obra ou ao estado da questão. A principal diferença, no fundo, é apenas formal: em História da Arte esse trabalho é habitualmente apresentado como parte de um texto com um objectivo mais vasto (tipicamente um capítulo ou uma secção de livro, dissertação ou tese) e não se constitui como texto autónomo, geralmente publicado na forma de artigo1.

Independentemente da área, uma revisão, ou um estado da questão, implica o levantamento sistemático da principal bibliografia primária sobre o assunto, mas não se limita à apresentação dessa lista. Deve fazer uma avaliação crítica dessa bibliografia: quer ao nível metodológico quer ao nível das conclusões, deve realçar pontos fortes e pontos fracos, deve assinalar a novidade e as limitações e deve apontar as relações existentes entre as várias publicações, seja em termos de génese ou de conteúdos. Além do que já se sabe, deve ainda destacar os aspectos que não estão suficientemente esclarecidos, para os quais se deve orientar a investigação futura.

Por dar uma panorâmica geral, uma revisão é extremamente útil a quem pretende iniciar-se num determinado assunto, mas é igualmente útil para quem já está dentro do mesmo. Em ambos os casos, isso resulta da sistematização que envolve e da possibilidade, daí resultante, de se olhar criticamente para o conjunto e assim se poder perceber o que já está razoavelmente esclarecido e que assuntos ainda merecem atenção, as semelhanças metodológicas e de perspectiva adoptadas ou a sua diversidade, as relações entre as abordagens, etc. Um texto de revisão, embora compartilhe com um texto de divulgação o objectivo de dar uma visão geral sobre um assunto, distingue-se deste pelo contexto em que surge, pelos destinatários que tem (especialistas numa área ou público em geral), pela profundidade da visão que proporciona e, devido a tudo isso, pelas fontes em que se alicerça. Um texto de revisão surge sempre num contexto de investigação e destina-se a especialistas ou, pelo menos, interessados numa área, enquanto um artigo de divulgação se destina a um público geral e indiferenciado.

Para uma revisão é fundamental, portanto, a literatura primária. Obviamente, qualquer publicação da literatura primária, para que seja compreensível ou, pelo menos, possa ser considerada bem elaborada, deve conter algumas informações gerais de enquadramento que ou fazem parte do conhecimento comum do assunto em causa ou têm origem noutras publicações. Aliás, é frequente a introdução de uma publicação primária ser, em parte, uma revisão breve do assunto específico objecto de estudo. Estas informações gerais de uma publicação primária, portanto, não são a verdadeira contribuição dessa publicação e não é essa parte inicial que deve ser aproveitada para o essencial de um trabalho de revisão. Num texto de revisão, afinal como em qualquer outro trabalho, informações gerais devem ser obtidas em publicações gerais (obras de síntese, que integram a literatura secundária) e informações de pormenor na bibliografia específica (literatura primária). Para concretizar, um exemplo: como suporte da afirmação de que a camada de preparação de uma pintura tem uma grande importância numa pintura antiga deve usar-se um manual sobre técnicas de pintura2 ou uma revisão sobre a camada de preparação em pintura antiga3 e não um artigo sobre a composição química das preparações coradas na pintura francesa dos séculos XVII e XVIII determinada por microscopia electrónica de varrimento4. Pelo contrário, numa revisão sobre a composição química das camadas de preparação é este artigo que deve ser usado e não as outras publicações. Mas, para que fique claro: se se coloca uma referência bibliográfica como suporte da afirmação sobre a grande importância da camada de preparação de uma pintura – e não é óbvio que tal seja necessário pois pode-se considerar que isso é do conhecimento geral -, essa referência deve ser a efectivamente consultada e não qualquer outra só porque é mais recente, parece melhor ou dá melhor imagem sobre o trabalho realizado. A selecção deve começar antes, ou seja, onde é que se deve buscar informação sobre um determinado assunto.

Nas Ciências, em áreas de grande investigação e rápido desenvolvimento, é frequente um artigo de revisão incidir sobre um assunto sobre o qual já há outros artigos de revisão. Nesse caso, cada revisão foca-se nos desenvolvimentos ocorridos desde a revisão anterior, dando conta do que foi publicado apenas desde então e como é que essas novas publicações, além do novo conhecimento que trouxeram, mudaram ou não a perspectiva.

Na área da Conservação e Restauro, muito influenciada pelas Ciências, os artigos de revisão são relativamente comuns, sucedendo, inclusivamente que entre 2000 e 2009 já existiu uma revista (Reviews in Conservation, publicada pelo IIC) apenas dedicada à publicação de artigos de revisão5. Na base de dados AATA, no momento em que é escrita esta nota, estão registados 89 artigos publicados desde 2010, em diferentes revistas e sobre diferentes temas, com a palavra review (que significa revisão) no título, podendo haver um número igualmente significativo de artigos que, sendo de revisão, não contêm essa palavra no título. De uma forma geral, essas revisões são sobre problemas de alteração6 ou preservação7, tratamentos8, materiais de intervenção9, história dos materiais10 ou das técnicas11, métodos de análise12 ou, por vezes, vários destes problemas em conjunto a respeito de um material13. Os trabalhos de revisão na área da Conservação e Restauro não se limitam a artigos, havendo também exemplos de capítulos de livros de múltiplos autores14 e, inclusivamente, livros dedicados apenas à revisão de um assunto15. Em qualquer um dos casos, incidem sempre sobre temas específicos, pois requerem a leitura de toda a bibliografia primária significativa e um conhecimento pormenorizado do assunto. A maior ou menor especificidade do assunto objecto de revisão depende da quantidade de informação primária existente e da sua autonomia relativamente a outros assuntos.

Bibliografia

Correia, Ana Maria Ramalho; Mesquita, Anabela, Mestrados e Doutoramentos, 2.ª ed., Vida Económica Editorial, Porto, 2014.

Gastel, Barbara; Day, Robert A., How to Write and Publish a Scientific Paper, 8.ª ed., Greenwood, Santa Barbara, 2016.

Montgomery, Scott L., The Chicago Guide to Communicating Science, The University of Chicago Press, Chicago, 2003.

Serrano, Pedro, Redacção e Apresentação de Trabalhos Científicos, 2.ª ed., Relógio d'Água Editores, Lisboa, 2006.

 


1 No entanto, mesmo limitando ao caso português, há vários exemplos de artigos apenas de revisão em História da Arte, nomeadamente: Luís Afonso, "A pintura mural dos séculos XV-XVI na historiografia da arte portuguesa: estado da questão", Artis – Revista do Instituto de História da Arte da Faculdade de Letras de Lisboa, 1, 2002, pp. 119-137; Raphael Fonseca, "Francisco de Holanda: uma revisão historiográfica", Revista de História da Arte e Arqueologia, 15, 2011, pp. 29-50; Tiago Alexandre Asseiceira Moita, "A iluminura hebraica portuguesa do século XV: estado da questão", Cadernos de História da Arte, 1, 2013, pp. 57-73; Pedro Flor, "Esculturas Della Robbia em Portugal: Estado da questão e novas metodologias de análise", in Susana Varela Flor (ed.), A Herança de Santos Simões. Novas Perspectivas para o Estudo da Azulejaria e da Cerâmica, Edições Colibri, Lisboa, 2014, pp. 303-311; Paula Freire Cardoso, "Uma cultura visual para o feminino? Iluminura nos mosteiros dominicanos femininos do século XVI: o estado da questão", in Joana Ramôa Melo, Luís Urbano Afonso (ed.), O Fascínio do Gótico. Um Tributo a José Custódio Vieira da Silva, ARTIS – Instituto de História da Arte da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Lisboa, 2016, pp. 185-200; Clara Habib de Salles Abreu, "Modelos europeus na pintura colonial brasileira: o estado da questão", Revista de História da Arte – Série W, 7, 2018, pp. 141-150. Tendo em conta a importância dos livros em História da Arte, há, inclusivamente, exemplos de revisões na forma de livro: Paula Freitas, Maria de Jesus Gonçalves, Painéis de S. Vicente de Fora. Uma Questão Inútil?, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 1987.

2 Por exemplo, Manuel Huertas Torrejón, Materiales, Procedimientos y Técnicas Pictóricas, vol. 2, Akal, Madrid, 2010.

3 Por exemplo, Maartje Stols-Witlox, "Grounds, 1400-1900", in Joyce Hill Stoner, Rebecca Rushfield (ed.), The Conservation of Easel Paintings, Routledge, Abingdon, 2012, pp. 161-185.

4 Por exemplo, Alain R. Duval, "Les préparations colorées des tableaux de l'Ecole Française des dix-septième et dix-huitième siècles", Studies in Conservation, 37(4), 1992, pp. 239-258.

5 A revista actualmente está disponível online como suplemento dos Studies in Conservation. Actualmente, o seu objectivo está incorporado nos Studies in Conservation.

6 Por exemplo, Adya P. Singh, "A review of microbial decay types found in wooden objects of cultural heritage recovered from buried and waterlogged environments", Journal of Cultural Heritage, 13(3S), 2012, pp. S16-S20, https://doi.org/10.1016/j.culher.2012.04.002; S. Choi, Soyeon AF Choi, "Foxing on paper: a literature review", Journal of the American Institute for Conservation, 46(2), 2007, pp. 137-152, https://doi.org/10.1179/019713607806112378.

7 Por exemplo, Josep Grau-Bové, Matija Strlic, "Fine particulate matter in indoor cultural heritage: a literature review", Heritage Science, 1, 2013, art. 8, https://doi.org/10.1186/2050-7445-1-8.

8 Por exemplo, Spiros Zervos, Irene Alexopoulou, "Paper conservation methods: a literature review", Cellulose, 22(5), 2015, pp. 2859-2897, https://doi.org/10.1007/s10570-015-0699-7; Patricia Sanmartín, Francesca Cappitelli, Ralph Mitchell, "Current methods of graffiti removal: A review", Construction and Building Materials, 71, 2014, pp. 363-374, https://doi.org/10.1016/j.conbuildmat.2014.08.093; J. S. Pozo-Antonio, T. Rivas, A. J. López, M. P. Fiorucci, A. Ramil, "Effectiveness of granite cleaning procedures in cultural heritage: A review", Science of the Total Environment, 571, 2016, pp. 1017-1028, https://doi.org/10.1016/j.scitotenv.2016.07.090.

9 Por exemplo: Sasha Chapman, David Mason, "Literature review: the use of Paraloid B-72 as a surface consolidant for stained glass", Journal of the American Institute for Conservation, 42(2), 2003, pp. 381-392, https://doi.org/10.1179/019713603806112813.

10 Por exemplo, J. Henderson, J. An, H. Ma, "The archaeometry and archaeology of ancient Chinese glass: a review", Archaeometry, 60(1), 2018, pp. 88-104, https://doi.org/10.1111/arcm.12368.

11 Por exemplo, Irina Crina Anca Sandu, Luis Urbano Afonso, Elsa Murta, Maria Helena de Sá, "Gilding techniques in religious art between East and West, 14th -18th centuries", International Journal of Conservation Science, 1(1), 2010, pp. 47-62.

12 Por exemplo, Douglas M. Goltz, "A review of instrumental approaches for studying historical inks", Analytical Letters, 45(4), 2012, pp. 314-329, https://doi.org/10.1080/00032719.2011.644712.

13 Por exemplo: Alessia Coccato, Luc Moens, Peter Vandenabeele, "On the stability of mediaeval inorganic pigments: a literature review of the effect of climate, material selection, biological activity, analysis and conservation treatments", Heritage Science, 5(1), 2017, art. 12, https://doi.org/10.1186/s40494-017-0125-6.

14 Por exemplo: Vincent Daniels, "Aging of paper and pigments containing iron and copper: a review", in Harrier K. Stratis, Britt Salvesen (ed.), The Broad Spectrum. Studies in the Materials, Techniques, and Conservation of Color on Paper, Archetype Publications, London, 2002, pp. 116-121; J. Karbowska-Berent, "Microbiodeterioration of mural paintings: a review", in Robert J. Koestler, Victoria H. Koestler, A. Elena Charola, Fernando E. Nieto-Fernandez (ed.), Art, Biology, and Conservation: Biodeterioration of Works of Art, Metropolitan Museum of Art, New York, 2003, pp. 266-301; Spring Marika, "Fading, darkening, browning, blanching: a review of our current understanding of colour change and its consequences in old master paintings", in Clarricoates Rhiannon, Dowding Helen, Gent Alexandra (ed.), Colour Change in Paintings, Archetype Publications, London, 2016, pp. 1-14.

15 Por exemplo: John J Hughes, Jan Válek, Mortars in Historic Buildings. A review of the scientific and conservation literature, Historic Scotland, Edinburgh, 2003; Eric Doehne, Clifford A. Price, Stone Conservation: An Overview of Current Research, 2.ª ed., The Getty Conservation Institute, Los Angeles, 2010, http://hdl.handle.net/10020/gci_pubs/stone_cons_2nd_edit.