Conservação e restauro: o caso do santo sem cabeça

António João Cruz

 

Em numerosos órgãos de comunicação social escrita e audiovisual, surgiram há poucos dias notícias sobre uma intervenção de conservação e restauro no tecto da Igreja Matriz de Vilar de Besteiros, no concelho de Tondela, e, como frequentemente acontece a respeito destes assuntos, na sua origem está a indignação que a mesma originou. O problema é que o tecto, formado por um conjunto de pequenas pinturas sobre madeira distribuídas por caixotões, não ficou de acordo com as expectativas de alguns que consideram que a intervenção, que deveria ter como objectivo a preservação e a valorização do património, afinal acabou por o destruir. Entre outros exemplos desta alegada destruição, é destacado o caso de uma das pinturas onde, em vez do busto que se via, está agora um busto sem cabeça. Onde estava a representação do rosto de um santo, apenas ficou uma mancha disforme de cor acinzentada.

Este caso de Vilar de Besteiros, no entanto, é muito diferente de outros que, também em tempos recentes, tiveram ampla divulgação, como o das esculturas de Oliveira do Hospital. Nesses outros caos indignaram-se em uníssono os conservadores-restauradores contra o que foi feito, descrito como gritante manifestação de incompetência teórica e prática, enquanto os membros das comunidades a que pertencem as obras se mostraram satisfeitos com os resultados, uma vez que as marcas que consideravam de degradação tinham sido eliminadas, ficando as obras como novas. Pelo contrário, neste caso de Vilar de Besteiros não parece ter havido significativas críticas de conservadores-restauradores, surgindo antes as de habitantes locais que não se conformaram com as alterações introduzidas.

Esta intervenção, em particular a pintura do santo que ficou sem cabeça, é um caso que de forma muito clara põe em evidência a complexidade inerente a uma intervenção de conservação e restauro, a qual está longe de se resumir ao aspecto final e, portanto, à perícia manual ou, dito de outra forma, ao jeito de quem realiza o trabalho.

De facto, para um conservador-restaurador, a obra em que intervém é, antes de mais, um documento histórico, ou seja, um objecto que dá testemunho do que se materializou de uma série de ocorrências do passado, como a qualidade do artista que a executou, a forma de ver o mundo e os valores da sociedade e dos indivíduos que estiveram na origem da obra e, também, as vicissitudes várias que lhe causaram danos, seja por acção do tempo ou dos homens. Assim, o primeiro objectivo do conservador-restaurador é preservar esse documento do passado para que o mesmo possa continuar a desempenhar a sua função histórica ou documental no presente e no futuro. Por isso, ele intervém o menos possível na obra – o chamado princípio da intervenção mínima.

Dentro deste espírito, quando numa obra falta uma parte, um conservador-restaurador pode não a refazer. Antes de mais, muitas vezes é desconhecido como seria a parte em falta, pelo que qualquer tentativa de reconstituição seria uma pura invenção. Por isso, julgo que nenhum conservador-restaurador pensaria em, por exemplo, fazer uma cabeça para a Vitória de Samotrácia ou completar os braços da Vénus de Milo, as quais, mesmo com essas faltas, ocupam lugares de grande destaque no Museu do Louvre. Mas mesmo quando documentação ou outras obras mostram como seria essa parte, um conservador-restaurador pode também não a refazer, de forma a não apagar parte da história da obra.

De modo semelhante, quando um conservador-restaurador intervém numa obra já restaurada no passado e depara com partes que, tendo sido seguidos outros critérios, já tinham sido refeitas, ele pode mantê-las. Afinal, essas partes refeitas no passado fazem parte da história da obra e também têm um valor documental. Se as remove, como frequentemente acontece, isso geralmente resulta de o estudo técnico e científico mostrar que tais partes causam problemas de conservação e não devido a um objectivo, impossível de alcançar, de recuperar o estado original.

O problema maior surge quando a obra não pode ser encarada apenas como um documento histórico por, de alguma forma, continuar a ser activamente usada – como sucede, especialmente, com objectos de culto ou obras com valor afectivo para o seu proprietário ou para a comunidade a que pertencem. Num caso destes, o actual uso da obra impõe uma intervenção onde se debatem soluções contraditórias: a não reconstituição recomendada pelo princípio da intervenção mínima com a reconstituição indispensável à fruição da obra. No caso de existirem restauros antigos que causam problemas à obra, confronta-se a necessidade de os remover para minimizar esses efeitos, com a necessidade de os manter para não afectar a imagem já consolidada na memória e a integridade visual da obra (aquilo a que os conservadores-restauradores geralmente chamam leitura da obra). O compromisso entre estes princípios opostos tem de ser encontrado necessariamente através do diálogo entre o conservador-restaurador e o proprietário, de forma a se encontrar uma solução que não ponha em causa nem os princípios éticos do primeiro nem as expectativas do segundo. Além disso, num caso em que a obra é património de uma comunidade, este processo tem de lhe ser bem explicado (como, de forma pioneira, sucedeu na década de 1970 em Alcobaça) e tem de ter em conta os valores que a obra pode ter para os membros dessa mesma comunidade.

Tudo isto faz parte integrante da actividade de conservação e restauro. É por aqui, por esta difícil arte de conciliar contraditórios princípios, estes e outros, que verdadeiramente passa a distinção entre um conservador-restaurador e alguém que até tem jeito para restauros. É que a execução prática, ainda que dela directamente resulte a imagem final, que se confunde com o próprio restauro, é, muitas vezes, a parte mais fácil.

 


Texto escrito em Setembro de 2014 quando foi divulgado o caso relatado.